quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Sozinho

Sentou-se em frente dele mesmo.
Percebeu-se faltoso consigo.
Naquela longa, longa noite,
perdeu-se em blocos.

Sentou-se em frente ao espelho d´água.
Percebeu-se aquoso consigo.
Naquela longa, longa noite,
perdeu-se, fluido.

Sentou-se em frente ao breu.
Percebeu-se poço sem fundo.
Naquela longa, longa noite,
perdeu-se, infinito.

E para cada canto tinha um álibi.
E para cada álibi, um juízo.
E para cada juízo, um chamado.
E para cada chamado, um zumbido.

Sentou-se em frente a vida.
Percebeu-se só desde o inicio.
Naquela longa, longa noite...
percebeu-se, perdido.

domingo, 11 de agosto de 2013

Ida e volta

Viajou para longe para voltar inteiro.
Quando chegou, encontrou seu lugar ocupado.
Chorou três dias e mais um copo de vodca
Perdeu viagem ao se procurar onde não estava.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Os outros

Era tudo e tanto em tão pouco tempo
que desgastou a aurora e a cor,
desmascarou a ruidosa harmonia
e foi, então, o que restou: o vento

E sabe-se lá por onde andam
não comunicam nem encantam
só ignoram a razão dos loucos
 e se fazem de tontos
 como se nunca tivessem se amado



sexta-feira, 31 de maio de 2013

Pardal

Chamava-se Pedro. Tinha oito anos.
Decidiu que a vida dentro de casa era muito chata.
Combinou com os amigos.
Mamãe não me deixa sair. Vou mandar meu coração preso em um balão. Recebam minha encomenda.
Pegou seu coraçãozinho, amarrou num balão de gás vermelho, foi até o quintal e soltou.
Viu, feliz, seu tesouro voando pelos céus e indo para quem ele tinha mandado.
Estava livre. Livre para ir por todos os caminhos que ele queria ir. Estava solto num espaço tão quente e acolhedor que seus sonhos pareciam pequenos.
Ao perder o pontinho vermelho de vista, voltou correndo para dentro de casa. E não sentia mais nada.
A mãe tinha feito bolo e ele nem sentiu vontade de passar os dedinhos na cobertura como sempre fazia.
O irmão chamou: Vamos brincar na casa do vizinho. E ele não sentiu seu coração bater forte em busca de traquinagem.
Perdeu-se. Voou, realmente, para tão longe que não tinha mais como voltar.
Os dias eram longos e sozinhos.
Quebrou uma coisinha dentro dele. Quebrou em volta dele.
Mandou um bilhete no bico de um pardal:
Amigos, preciso urgente do meu coração. Mandem de volta.
Recebeu a encomenda três dias depois.
Estava um pouco sujo e amassado.
E talvez por isso, ou talvez só por conta do tempo que se passou, a vida nunca mais foi a mesma.

terça-feira, 23 de abril de 2013

Noticiário

E era a vida frágil. E era o ar árido. E era o despeito em forma de tédio.
E era a angústia salafrária. E era a tristeza disfarçada. E era a tormenta suja.

E já não é mais. Já não cobre mais de pólvora a mão dura.
E já não empunha mais a arma fria.
Era bandido. Agora, morto. Semi morto. Agonizante.

Um celular, uma vida.
Uma mochila, um destempero, uma sacada para jogar filhos.
Bandidos. Todos nascidos de ventre. Todos.
Cada qual parido. Desejado? Odiado? Deixado? Amado?
Bandido. Que mata filho dos outros, que mata seus próprios filhos.
Bandido.
Que rouba dinheiro vestindo bermuda, vestindo terno e gravata. Atrás das mesas.
Dentro de igrejas. Em buracos de fumo. Que mata freiras, ativistas, putas, mães.
Que explode pessoas, que mutila.
Bandido. Mesmo tipo. Mesma culpa.
Todos da mesma raça. A raça humana. Essa raça que se define em categorias.
Em clãs. Em divisões de status. Que julga o credo, o sexo, a dor, a cara.
Raça. Raça. Humana. Desumana.
Como criaremos novas crianças? Como educaremos quem mora dentro de casa?
Talvez, matando o bandido que existe dentro de cada um?
Aquele que, vez ou outra, sussurra barbaridades em nossos ouvidos.
Aquele que diz que somos melhores. Que somos mais puros.
Talvez, só talvez, o mundo que vive fora de nós seja mais suportável,
quando o mundo que vive em nossas tripas, for mais doce.

E vamos viver.
Até porque,  a vida exige coragem.

quarta-feira, 6 de março de 2013

Competência (Ou: A culpa é de quem?)

Atendia pelo apelido de Neco. O nome era Manoel. Virou Maneco. Aos 20, era Neco.
Tinha pouca coisa na vida porque acostumara-se a essa diminuição.
Culpa da mãe. Era ela a causadora de tudo, visto que ia chamando o filho por nomes cada vez menores.
Se, ao contrário, aumentasse seus apelidos, gritasse por ele usando superlativos, colocasse seu nome em frases bem longas, usando proparoxítonas, acentuando tudo com empenho e consideração...
Mas, os acentos também quase estão em desuso. Fora de moda. Ideia, que era uma palavra tão certa para se botar um acento, já nem se acentua mais. Se ideia caiu, que dirá as outras tantas palavras que nem tanta importância tem?
Caiu Maneco, também. Caiu Manoel, Manoelzinho, Manequinho. Ficou Neco. E, para desespero do moço, ouvira, outro dia, a mãe, bem baixinho, chamando: Ne, vem jantar, Ne.
Era necessário sair daquilo. Tomar força. Crescer no nome e na vida.
Arrumou um emprego. E como, ao contrário de sua teoria, era sua incompetência, a razão do seu fracasso, foi, dia a dia, fazendo bobagens sem fim atuando como ajudante dentro de uma empresa de etiquetas.
O chefe dava berros constantes. Mas seu auge ali dentro foi quando, ao ser chamado a sala da gerência, ouviu:

Seu energúmeno inútil débil estúpido, veja se trabalha direito!!!!!

Neco encheu o peito. Puxa. Energúmeno? Palavra boa. E os acentos todos?
Agora, sim! Agora, sim, senhor! A vida ia dar certo!

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

A vista

Descobriu-se além de todos eles.
Cobriu-se apaixonado pela própria pele.
Coloriu a boca, rasgou as vestes todas,
gozou em gritos calibrosos,
e ardeu em febre.
Ardeu em febre.

Cobriu-se além de todos eles.
Descobriu-se apaixonado pela própria pele.
Limpou a boca, costurou as vestes todas,
chorou em sussurros límpidos,
e esfriou até a morte.
Esfriou até a morte.

Caminhou como quem caminha ao vento.
Achou como quem acha ouro.
Sentou num muro alto.
Apreciou a vista dele mesmo.
Apreciou a vista dele mesmo.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

1+1

Estava afoita fazendo compras no supermercado.
Demorava mais por conta do antigo hábito de só comprar em números pares. 
Dez laranjas. Nem nove. Nem onze.
Quatro maçãs. Nem três. Nem cinco.
Muitas vezes, perdia-se na conta, e era necessário voltar do início. Um, dois...
A vida era para ser vivida, feita e dirigida em pares. Essa é a verdade, pensava consigo.
Era feliz assim.
Não sabia, mas, perto dela, estava um senhorzinho. Noventa anos.
Esse comprava apenas um de cada. Um pepino, uma cenoura, um mamão.
Ao chegar em casa, ele, pacientemente, repartia tudo coma esposa.
Eram felizes assim.

A beleza da vida: cada um multiplica do seu jeito.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

O alvo

Nem só, nem nunca
nem teto, nem burca.
Somente lindo e plenamente
enroscado na boca tua.
E, em caso de choro ou espanto,
que seja teu, meu encanto
que seja lua, tua noite
que seja cega, tua foice.
Que não haja cortes
nem mistérios.
E, em caso de riso ou pranto,
seja eu, teu sopro e canto
que sejamos nós, sensatos arqueiros
a mandar nossas flechas além de nós mesmos.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

O sexo de cada um (Ou: Sorveteria) (Ou: Comer faz bem)

Era imensa.
290kg.
Sobrava em todos os lugares, e seus pés minúsculos mal podiam com ela.
As mãos, também incrivelmente pequenas, acompanhavam toda a falta de proporção.
Menor que os membros, somente o marido. Franzino, levemente cabisbaixo, submisso diante daquele tamanho de mulher com a qual casara.
Entraram na sorveteria. Ela, como sempre, a frente. Decidida. Olhos firmes de quem sabe exatamente o que quer. Logo sentou-se ao lado de um casal. Antes, tirou a bolsa da outra moça que ali repousava.
Essa bolsa é sua? Perguntou em tom de crítica.
A vizinha sorriu, tirou a bolsa da cadeira, e deu espaço para a outra sentar-se.
O marido veio em seguida. Encontrou a mulher aflita, a espera de sua taça gigante. Pedi um dos bons. Disse a esposa. E completou para que todos ouvissem: Não quero nada diet, hein? Garçonete? Olha, não me traga nada diet.
A pobre atendente, arregalou os olhos e disse: Jamais. Não, senhora. Vai vir tudo como o pedido.
Assim que chegou a taça, a macro mulher devorou em segundos em colheradas avassaladoras. O marido, cúmplice daquela orgia, dizia:
Veja, benzinho, como aqui que está escorrendo. Veja, aqui tem mais um pouco.
Ela lambia a taça, a colher, os beiços.
Acabou de devorar tudo no momento exato em que chegava a taça do marido.
Ele, educadamente, ofereceu a sua mulher uma provada daquela maravilha.
Ela negou, porém, prontamente, com outra colher em punhos foi cavocando a sobremesa do parceiro. E ia dando sua ordens. Voz forte:
Fulano, coma essa fruta que está embaixo. Coma. Coma esse creme. Não quer mais? Coma tudo. Olha este pedaço, que beleza.
O marido não respondia. Apenas tentava salvar uma parte ou outra, já na certeza de que não sobraria nada para ele. A mulher mandava que ele comesse, mas atacava tudo sem deixar espaço para a colher dele.
Que lástima, ele pensou. Mesmo assim, ao final, esticou as mãos para ela. Esgotados. Cada um faz sexo como sabe. Essa era a verdade.
Ficaram ali, dedos entrelaçados. Acenderiam um cigarro, se fosse permitido.
O marido foi pagar a conta e disse: Vou buscar o carro, já venho.
Demorou. Segurando no volante, respirou fundo. Cúmplice. Macho.
Parou o carro frente a porta; a mulher já tinha se arrastado até a calçada.
Foram embora. Ele decidido a tomar uma ducha, ela decidida a parar na padaria.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Para tudo tem um jeito

Tinha compulsão por compra.
Decidiu procurar um especialista.
Saiu com a receita em mãos.
Comprou duas caixas de remédio. 
Depois, foi de psiquiatra a psiquiatra, só para ter remédios para comprar.