─ Dona Maria Emilia, posso dar uma palavrinha com a senhora?
─ Claro, Zezé. O que foi?
─ A senhora não põe reparo, mas eu quero minhas conta.
─ Como assim, Zezé? O que foi que houve? Olha, se o problema
for o seu salário...
─ Não, o salário não é ruim, não senhora.
─ Já sei! Você quer tirar uns dias de folga para visitar sua
família? Pode ir, Zezé. Vá visitar sua parentela.
─ Não quero ver os parente, não. Já morreu quase todo mundo.
─ Ai, Zezé, não faça assim. Você quer que eu te compre uma
casinha? Você pode escolher um bairro melhorzinho para morar. O Wilson tem uns
apartamentozinhos para investimento. Vou colocar você lá. Você quer?
Quando ficava nervosa, Maria Emilia colocava tudo no
diminutivo.
─ Não, senhora. Eu gosto da minha casa. Só quero minhas
contas, mesmo.
A patroa sentia o amargo gosto do desespero. Olhava suas
unhas tão bem feitas e que logo estariam enroscadas numa cueca, no inevitável
esfrega- esfrega para tirar a sujeira. Seus cabelos tão macios, que brevemente
estariam amarrados num coque alto e suado, enquanto ela limpava o chão da
cozinha. Maria Emilia tinha o ar dos
condenados.
E o Wilson que só queria bife? Fritar bife, meu Deus.
Os gêmeos que
faziam guerra de macarrão ao final do jantar, Glorinha que apontava todos os
lápis em cima da cama. E o Cadu, então? O menino jogava bola e ia atirando as
meias encardidas pelos cantos. Lavar aquelas meias era um trabalho tão difícil
quanto retirar as tropas do Iraque. Um dia, ela até fez essa comparação,
assistindo ao jornal. Disse com despeito: Esse homem está achando difícil tirar
um grupo de marmanjo da guerra? Manda ele vir aqui lavar as meias do Cadu, para
ver o que é missão impossível. Wilson não respondeu por que já estava dormindo.
Os gêmeos, na falta do que dizerem, arrotaram o Hino do flamengo. Era um dom.
Arrotar o hino do flamengo inteirinho e olha que eles eram fluminense doentes.
─ Me diga, Zezé? Porque você quer ir embora, minha filha? Eu
te fiz alguma coisa? Você está insatisfeita com o quê, pelo amor de Deus?
Maria Emilia já estava quase aos berros. Puxava uns
cabelinhos novos nas têmporas.
─ Num guento mais os menino, Dona Maria Emilia. Tomei um
abuso das criança. A senhora não leve a mal, mas os bichinho são uns capeta.
Outro dia mesmo, os gêmeos mais a menina acenderam um peido de velha no meu
quarto enquanto eu dormia. Tomei abuso. A senhora não leve a mal.
Zezé estava com os olhos firmes. Chorosa estava Maria
Emilia. Toda dona de casa já passou pelo desespero de ouvir a empregada pedir
as contas. O marido pode até ir embora: Olha, benzinho, to fugindo com a dona Euclicia,
minha secretária, e não volto mais. A mulher pode até fazer um ar de surpresa,
até dizer uns ais e uns porquês, mas desespero mesmo, sentimento de impotência
diante do mundo cão é só quando a empregada pede as contas.
À noite, quando o marido chegou, a casa estava com tudo
limpo e com um ar de tranqüilidade. Flores novas no vaso, comida pronta na
mesa. Toalhas trocadas. Tudo, como sempre, um brinco. Até um pouco mais do que
o costume. Foi entrando, viu a mulher com um sorriso de vitória no rosto
enquanto retocava o esmalte vermelho na unha.
Passou pelo quarto dos gêmeos, da Glorinha, Cadu, e não viu
ninguém
─ Cadê as crianças, Maria Emilia?
─ Estão a caminho de Bento Gonçalves.
─ Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul? Fazendo o que? Quando
foram?
─ Mandei passarem uns dias com a Neca.
─ Que Neca?
─ Aquela prima da sua mãe. Uma bem magrinha, asmática. Aquela
que fala assobiando.
─ Meu Pai, Maria Emilia. O que foi que aconteceu? Você
enlouqueceu? E a escola? A Glorinha está em provas. Que te deu na
cabeça? Na casa da Neca, Maria Emília? Tem anos que nem sei da Neca. Não era
ela que tomou detergente quando soube que o Dimas era irmão dela? Ela teve caso
com o irmão, Maria Emilia! Só explica o porquê de fazer isso com as crianças.
─ A Zezé ameaçou ir embora, Wilson. Disse que não agüenta
mais as crianças. Se você quiser trago as crianças, mas a Zezé arruma as coisas
dela e vai embora.
Wilson engoliu em seco. Passou o dedo na mesa, enquanto pensava.
Nem um pozinho. Nada. Tudo tão limpo, tão brilhante.
─ Quanto tempo elas vão ficar lá?
─ Ainda não combinei com a Neca. Pensei que uns três meses,
no máximo quatro. Talvez cinco, se a Neca concordar.
─ É, até que vai ser bom para as crianças. Família é tudo, Maria Emília. Hoje em dia, a juventude não convive
mais com a família. Isso sim. Você pensa em tudo, Maria Emilia.
E lá foi Wilson, tomar o banho que Zezé já tinha preparado.
Antes de entrar na banheira ainda fez um passinho de dança. Uma valsa. A vida
era uma valsa.