sábado, 28 de abril de 2012

Mulher de poeta


Essa espera louca e sem sentido
Querendo te engolir inteira
Te comer sem motivo
E ter você a caminhar em minhas costas
Tirar as minhas botas e calar meus ouvidos
Sussurrando suas falas             
Roçando sua cara
E ainda sim, querendo tudo e mais
E só um tanto dentro de outro tanto
Até te calar, enfim.

Essa espera louca e sem sentido
De semanas e semanas
E calores e zumbido
E minha face toda sua
E minhas pernas bambas e cruas.
E você e eu e tudo o mais
E mais alguém
Essa tristeza, essa frieza
Essa felicidade fingida e ao mesmo tempo real
Visceral. Pânico. Tântrico. Mofo.
E todas as outras pessoas
E a volta toda
E a gente toda que assiste nossos olhares
E sua feição doce, pouca, desdenhosa, intensa e tudo o mais.

Essa espera louca e sem sentido
De te ler
De te entender
E gritar minhas ânsias a quem quiser ouvir
E decidir o que quero
Se te quero
Se te amo
Se te como
Se te corno
Se te lambo
Se te louco
Se te limo
Se te mato
Em meu peito e fim.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

As mulheres de Machado



O Poeta, cansado das suas ousadias,
tão próprias e dissimuladas,
decidiu escrever outro livro,
de outra maneira,
de outro punho,
com outras taras.

Decidido o assunto,
burlando as regras,
fez nova gramática,
novos espetáculos,
novas métricas.

Deixou de lado Beatriz,
devolveu Patrícia,
cimentou Carolina,
e descobriu que amava,
que delirava,
que expandia novamente.

Larissa tinha pintas
espalhadas,
definidas.
Tinha colo,
ombro desnudo,
olhos grandes,
obsessões Machadianas.

E era um novo poema
a desiludi-lo desde cedo.
Era tão fracasso
quanto os seu antigos,
quanto os espartilhos
que guardava no armário.

Era poeta de caricatos,
de cinturas apertadas,
de sombrios beijos,
de um toque que lhe exigia a alma.
  
E se soubessem do que era capaz,
se ouvissem sua voz rouca e seu despertar
por certo o amariam,
caberiam nele
leriam suas peças
seus poemas acabados,
repetitivos,
de desejos não consumidos,
só escritos,
só apagados.

Nas lousas de sua casa
com giz escarlate,
com a pele descoberta,
era assim que compunha:
sentado num banco de piano
que morreu com a última nota.

Era o desprazer de escrever
sabendo que remotamente seria feliz.
Porque poeta que sorri,
que leciona otimismo,
que soletra rápido,
que não se aflige,
não é poeta,
é outra coisa,
é outra gíria,
é outro mundo.

E no mundo
que esse poeta vive
só cabe poema,
só cabe caneta,
calcada, tarada,
teimosa, cruenta.

Só cabem mulheres
de dedos longos,
que repousam em pianos inexistentes,
que clareiam as noites
com a brancura de seus dentes.

O sonho do Poeta era de viver
amarrado em lenços,
Dormir.
E, dormindo repousado,
ouvir no fundo da madrugada
um suspiro,
uma tecla,
um rodopio,
um salão como de antigamente.

O Poeta quer ser antigo,
quer sofrer em ambientes largos,
quer deitar-se na sua cama
enquanto você lê este poema;
quer dormir do seu lado
quer fazer você rimado,
quer acordar com sua ausência,
quer fazer, do seu amor marginalizado,
outro livro,
outro tiro,
outro cuidado.

Agora mesmo dorme
recostado que está nos seus ombros.
Enquanto você lê este poema,
que começa dentro de outro,
ele o seduz a ir com ele,
a morar no seu quarto,
a usar espartilho,
a caminhar sobre giz

Até que, ao final da manhã,
amanhecerá novamente,
e você ,descuidada e nua,
porá seus pés no chão,
comerá apenas grãos,
viverá só de poesia,
vestirá só partitura,
e verá que loucura é viver
sem poeta no colchão.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

A valsa



─ Dona Maria Emilia, posso dar uma palavrinha com a senhora?
─ Claro, Zezé. O que foi?
─ A senhora não põe reparo, mas eu quero minhas conta.
─ Como assim, Zezé? O que foi que houve? Olha, se o problema for o seu salário...
─ Não, o salário não é ruim, não senhora.
─ Já sei! Você quer tirar uns dias de folga para visitar sua família? Pode ir, Zezé. Vá visitar sua parentela.
─ Não quero ver os parente, não. Já morreu quase todo mundo.
─ Ai, Zezé, não faça assim. Você quer que eu te compre uma casinha? Você pode escolher um bairro melhorzinho para morar. O Wilson tem uns apartamentozinhos para investimento. Vou colocar você lá. Você quer?

Quando ficava nervosa, Maria Emilia colocava tudo no diminutivo.

─ Não, senhora. Eu gosto da minha casa. Só quero minhas contas, mesmo.

A patroa sentia o amargo gosto do desespero. Olhava suas unhas tão bem feitas e que logo estariam enroscadas numa cueca, no inevitável esfrega- esfrega para tirar a sujeira. Seus cabelos tão macios, que brevemente estariam amarrados num coque alto e suado, enquanto ela limpava o chão da cozinha.  Maria Emilia tinha o ar dos condenados. 
E o Wilson que só queria bife? Fritar bife, meu Deus. 
Os gêmeos que faziam guerra de macarrão ao final do jantar, Glorinha que apontava todos os lápis em cima da cama. E o Cadu, então? O menino jogava bola e ia atirando as meias encardidas pelos cantos. Lavar aquelas meias era um trabalho tão difícil quanto retirar as tropas do Iraque. Um dia, ela até fez essa comparação, assistindo ao jornal. Disse com despeito: Esse homem está achando difícil tirar um grupo de marmanjo da guerra? Manda ele vir aqui lavar as meias do Cadu, para ver o que é missão impossível. Wilson não respondeu por que já estava dormindo. Os gêmeos, na falta do que dizerem, arrotaram o Hino do flamengo. Era um dom. Arrotar o hino do flamengo inteirinho e olha que eles eram fluminense doentes.


─ Me diga, Zezé? Porque você quer ir embora, minha filha? Eu te fiz alguma coisa? Você está insatisfeita com o quê, pelo amor de Deus?

Maria Emilia já estava quase aos berros. Puxava uns cabelinhos novos nas têmporas.

─ Num guento mais os menino, Dona Maria Emilia. Tomei um abuso das criança. A senhora não leve a mal, mas os bichinho são uns capeta. Outro dia mesmo, os gêmeos mais a menina acenderam um peido de velha no meu quarto enquanto eu dormia. Tomei abuso. A senhora não leve a mal.

Zezé estava com os olhos firmes. Chorosa estava Maria Emilia. Toda dona de casa já passou pelo desespero de ouvir a empregada pedir as contas. O marido pode até ir embora: Olha, benzinho, to fugindo com a dona Euclicia, minha secretária, e não volto mais. A mulher pode até fazer um ar de surpresa, até dizer uns ais e uns porquês, mas desespero mesmo, sentimento de impotência diante do mundo cão é só quando a empregada pede as contas.


À noite, quando o marido chegou, a casa estava com tudo limpo e com um ar de tranqüilidade. Flores novas no vaso, comida pronta na mesa. Toalhas trocadas. Tudo, como sempre, um brinco. Até um pouco mais do que o costume. Foi entrando, viu a mulher com um sorriso de vitória no rosto enquanto retocava o esmalte vermelho na unha.
Passou pelo quarto dos gêmeos, da Glorinha, Cadu, e não viu ninguém

─ Cadê as crianças, Maria Emilia?
─ Estão a caminho de Bento Gonçalves.
─ Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul? Fazendo o que? Quando foram?
─ Mandei passarem uns dias com a Neca.
─ Que Neca?
─ Aquela prima da sua mãe. Uma bem magrinha, asmática. Aquela que fala assobiando.
─ Meu Pai, Maria Emilia. O que foi que aconteceu? Você enlouqueceu? E a escola? A Glorinha está em provas. Que te deu na cabeça? Na casa da Neca, Maria Emília? Tem anos que nem sei da Neca. Não era ela que tomou detergente quando soube que o Dimas era irmão dela? Ela teve caso com o irmão, Maria Emilia! Só explica o porquê de fazer isso com as crianças.
─ A Zezé ameaçou ir embora, Wilson. Disse que não agüenta mais as crianças. Se você quiser trago as crianças, mas a Zezé arruma as coisas dela e vai embora.

Wilson engoliu em seco. Passou o dedo na mesa, enquanto pensava. Nem um pozinho. Nada. Tudo tão limpo, tão brilhante.

─ Quanto tempo elas vão ficar lá?
─ Ainda não combinei com a Neca. Pensei que uns três meses, no máximo quatro. Talvez cinco, se a Neca concordar.
─ É, até que vai ser bom para as crianças. Família é tudo, Maria Emília. Hoje em dia, a juventude não convive mais com a família. Isso sim. Você pensa em tudo, Maria Emilia.

E lá foi Wilson, tomar o banho que Zezé já tinha preparado. Antes de entrar na banheira ainda fez um passinho de dança. Uma valsa. A vida era uma valsa.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Agenor


− Agenor, cuida das crianças um instantinho enquanto eu tomo sol, Bem ?
− Ah...vai começar o campeonato de biribol, Nega.
− Puxa, Agenor. O que custa? Um minutinho. Você nunca fica com as crianças. Eles sentem a sua falta, sabia? Outro dia mesmo peguei o Agenorzinho olhando uma foto sua e chorando.
 −Ai, Nega, não dramatiza. Que exagero!
− Exagero? O pior nem foi ele chorar de saudade de você. A pior parte foi a Alzira olhar a cena e perguntar quem era aquele da foto.
− Você faz tempestade num copo d’água. Meu amigo Moacir fica fora seis meses no ano e a mulher dele não abre a boca.
− Claro, né, Agenor. Ela ocupa bem o tempo com o motorista enquanto as crianças ficam o dia todo na escola. Ela não abre a boca para o Moacir, mas para o motorista...
− Deus que me livre, Nega. Que língua que você tem.
− Eu? Língua tem o motorista do Moacir. Isso é o que a mulher dele diz.
− Aff! Quero morrer seu amigo.
− Amigo, não, Agenor. Marido. Ma-ri-do. Pai das crianças. E por falar nisso, vai dar uma olhada neles, que daqui a pouco o sol vai embora e eu fico sem marquinha.
− Você não quer marquinha, Nega. Você quer é um câncer de pele, isso sim. Ta que parece um carvão
− Mas você é despeitado, não, Agenor? Pior é você, que volta da praia, branco feito um fantasma.
− Pelo menos vou viver 200 anos. Vou longe, minha filha.
− Com essa barriga, Agenor?
−O que tem, minha barriga?
− Faça-me o favor. Essa sua barriga é uma ópera ao AVC. É um atestado de entupimento de artéria. E nem vai dar para ver sua pele tão intacta quando você ficar roxo no meio do seu ataque cardíaco.
− Vira essa boca prá lá. Olha, você é bem igual a sua mãe!
−O  que tem, minha mãe?
− Que que tem? Ela matou seu pai de tanto falar que o estômago dele era fraco e ele iria explodir. Dito e feito. O homem explodiu, mesmo.
− O meu pai não explodiu, Agenor!
− Todo mundo diz que ele explodiu. No meio do churrasco da firma. O estômago não aguentou a pressão da angústia de ser casado com sua mãe, minha filha. Bum. Morreu lá mesmo. E dizem que sua mãe ainda ficou gritando no ouvido dele: Eu disse. Eu disse!
− Cala a boca, Agenor. Você nem sabe de nada.
− Ah, não? Sei sim, minha filha. Você e sua mãe são como mensageiras do apocalipse. E depois vem falar mal da mulher do Moacir. Pelo menos, ela dá pro motorista e deixa o Moacir em paz. Eu e seu pai não tivemos a mesma sorte.
− Ah, é? Ah, é, Agenor. Então, tá.

− Crianças! Vamos embora! Agenorzinho, Alzira, Rogério, Odetinha. Vamos! Chamem os gêmeos que nós vamos embora.
− Ah, mãe! Vamos ficar mais! A gente nem participou da brincadeira dos monitores.
− Vamos embora e pronto.
− E o papai?
 − O papai vai ficar jogando biribol.

Não teve mais nem menos. As mães, quando decidem, vão embora. As crianças seguiram em fila.
Agenor deu de ombros. Melhor. Agora sim iria curtir os amigos, beber sua cerveja, comer os pastéis de camarão.

− Abram espaço aí, gente. Vou dar uma bomba na piscina. Vamos jogar biribooooool!
− Vem, Agenor, gritaram os amigos.
Agenor deu um impulso. Correu com as perninhas curtas e gordas. Os amigos abriram espaço.
Lá foi Agenor pelos ares, mas, antes mesmo de cair na piscina, sentiu uma dor no peito e a pele branca arroxeou.

As crianças ainda ouviram o grito do pai, ao longe, e não entenderam quando a mãe murmurou: Eu disse!

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Pulsacões


Mil pulsações fazem de mim o que na verdade não sou.
Está decidido que nada sou. Poeta, não sou. Não sou meus soluços. Carimbos, não sou.
 Não sou a buzina que esperava que fosse a gritar por nomes em cada esquina de mim.
Não sou meus números nem minhas medidas, não sou passarinho, não sou trapezista. 
Fingidor, não sou.
Não sou caçador de rimas aladas, de palavras que, libertas que são, desprendem-se de meu vocabulário. Rimador, não sou. Não sou escudeiro, protetor, amigo, 
criador de música, de filme, de melodia sacana. Sacana, não sou. 
Não sou prelo, prelóquio, prelúcio, prelúdio, nem conhecedor de dicionário. Aurélio, não sou. Talvez prepúcio. Eu sou. Prepúcio, eu sou. Não sou tenista, não sou uniforme, 
não sou limpinho, não sou escolhido, não sou carro forte. 
Não sou estudante, não sou conciso, não sou sinistro, não sou cronista, não sou professor. Jornalista, não sou. Não sou cineasta, não sou contador de história,
 não sou bonzinho, namorado ou agiota. Bom ou mau caráter, não sou.
 Não sou escoteiro, não sou maconheiro, não sou pugilista, bombeiro,budista. 
Boa coisa, não sou. Não sou puritano, não sou maquinista, não sou flor-de-lis, flor de madeira, flor-de-mico, flor-de-noiva, flor-de-padre, flor-de-pau. Trepadeira, não sou. Trepadeira, não sou. Não sou de Itabira, não sou Raimundo, não sou José, 
não sou farmacêutico. Drummond, eu não sou.
Que coisa eu sou, se nada coisa a minha dúvida? 
Será que eu sou só uma coisa a desejar poema ou uma bunda procurando rima? Funda.
As pulsações me enganam, me aporrinham, me ensurdecem, me alucinam, me entristecem, me coisam, me coisam. E as coisas todas me perseguem e me julgam e também me faltam. Eu sou minha ausência. Quando minha presença fala, eu escapo de mim.

Resignadas



Quando duas mães encontram-se no elevador, é sempre aquele sorriso de resignação. 
Uma delas puxa a conversa entre o décimo segundo e a garagem:
— E aí?
A outra entende tudo. Há um dialeto entre as mães. Não há necessidade de frases complexas, introduções, figuras de sintaxe. Não. Na verdade, não precisaria nem do “e aí?” Bastaria um arquear de sobrancelhas.
— Estamos indo...
— Nem me fale. O Augustinho chegou em casa, hoje, e jogou o boletim na mesa da cozinha.
— E, então? Passou?
— E eu sei, minha filha? Não olhei. A psicóloga falou para eu dar autonomia para o menino. Disse que eu pego muito no pé e coisa e tal. O menino está precisando de espaço.
— Mas você não disse nada?
— Disse! Disse: Puxa, meu filho, outra tatuagem?
— Não me diga! Ele se tatuou?
— Sim. Aliás, essa que eu vi hoje é a mais recente. Se não me falha a memória, é a décima terceira. Não. Contando com a maior, deve ser um pouco mais.
— Ah, ele tem outra maior, é?
— Maior? Ele tem uma tribal que começa na nuca e termina no calcanhar.
— E você deixou?
— Deixei? Ele não me perguntou. Juntou o dinheiro que ganha de Natal, da avó, desde os cinco anos de idade e fez. Pronto. Ele foi até um senhor chamado Mr. Pain Tatoo e fez, minha filha. Quando eu vi, peguei aquele tamanco holandês que o pai dele me trouxe daquela viagem fatídica e dei na cabeça do menino. Fui chamada pela psicóloga.

Nesse meio tempo, as duas já tinham chegado à garagem e conversavam paradas perto da porta do elevador e amassavam o molho de chaves nas mãos.

— E, então? A psicóloga te ajudou à por limite?
— Ela disse que o menino tem uma queda pelas artes. Me mandou para o psiquiatra. Tô medicada.
— Que coisa. E eu achando que o moicano da Tamires era um problemão. Cabelo cresce, pelo menos.
— Sei não.
— Como assim: sei não?
— Ele disse que a Tamires foi com ele no tal Mr. Pain Tatoo.
— Ai, meu Pai. Se essa menina aprontou uma dessas comigo... Olha, reserva o outro pé do tamanco holandês.
— Não quero te assustar. Se eu fosse você daria uma olhada na virilha da menina. Talvez você encontre alguma coisa parecendo uma fada usando o sutiã pontudo da Madonna.
A outra põe a mão onde um dia bateu um coração saudável.
— Minha Nossa Senhora da Bicicletinha, me dá equilíbrio. É hoje que acabo com aquela menina. Não bastava aquele buraco na orelha?
— Alargador.
— Como?
— O buraco. Chama alargador.
— Gente, eu estou criando uma aborígene. Aquela orelha. É uma aborígene punk. O cabelo... E agora, você me fala da bruxa com meia arrastão.
— Na verdade, é uma fada. E o sutiã da Madonna. Sabe qual é? Aquele pontudo... Uma coisa assim ó!

Com a mão, aquela mãe fazia movimentos esquisitos explicando a ponta do peito da fada.
O zelador passou, viu a cena e pensou. Só podiam ser mães daqueles lá.
Aqueles lá. As mães criam os filhos e eles viram aqueles lá. Na melhor das hipóteses: as coisas. Às vezes, até sai um carinhoso “os pestes”

— A Tamires que me aguarde. Mais tarde eu passo na sua casa para pegar o tamanco. Aliás, aproveita e separa o telefone do psiquiatra. Melhor, já me adianta o nome do remedinho que eu já vou tomando para adiantar. Eu passo daqui uma hora para pegar tudo. Agora eu preciso ir buscar o poodle, que ficou fazendo trança no pet shop.
— Jura? Ele ta crescidinho?
— Crescidinho? Ele está uma bola. Tão branquinho. Não tem uma manchinha. Macio. Cheiroso. Vai lá em casa para ver. Você está devendo uma visitinha para ele. Ele ama visita.
— Vou, sim. Depois passo lá, levo uma lembrancinha para ele e já deixo as coisas que você pediu.
— Maravilha!

Saíram, as duas. Cada uma no seu carro. Com um sorriso resignado no rosto: o poodle sim era uma graça !




Oco


Os seus passos vieram no vazio e deram eco
Um eco que se prolonga a cada dia
Os seus passos vieram roucos no assoalho
E deixaram riscos na madeira cor de chuva
Os seus passos vieram rudes no asfalto
E trombaram com minhas luzes e buzinas
Os seus passos vieram marcas nas marcas da estrutura
De concreto, alumínio e pau Brasil
Seus passos vieram passos e foram cedo
E deixaram oco o eco rude coberto de massa e jasmim
Seus passos saltimbancos, mancos, pedalaram coisas
Fizeram gols em entranhas
E ficou o vazio enfim.

O fio


De alguma forma, a gente sabe!
Dentre tantas sombras que encapam os nossos “ais”,
Dentre os desejos e desistências aos quais nos submetemos,
Dentre todas as razões e vontades, de alguma forma, a gente sabe.
Conhece o que o coração mais almeja, e o que a alma tanto teme, 
no mais profundo dos sonhos.
Caminha sempre na direção desse saber, mesmo que escolha caminhos tão complexos 
e distantes das margens mais seguras.
No fundo, no fundo, a gente sabe quando se perdeu, quando se achou, 
quando amou de verdade, quando, simplesmente, morreu.
Dentro do peito moram angustias. E a gente conhece cada uma pelo nome que a gente mesmo deu. São meninas más que atormentam nossas fomes.
E, na vida, a gente dorme, come, sofre, ri, desfalece, enriquece, se leva, se deixa levar, corre, para,pari, mata, morre, xinga, consome, alimenta, aleita, amorna, acorda, rompe, casa, ama, odeia, amiga, assina, separa, arruma, desordena...
E sabe.
E, sempre sabe, o que os outros não sabem. Porque cada um sabe, o que sabe de si.
 Só de si. E cada um com o seu si. Com o seu “ai”.
É sempre um saber. E um fugir. E um encontrar.
E parece — para mim, parece —, que quando a gente se encontra de verdade, 
quando, finalmente, se deixa descansar nesse saber que sempre nos alertou por onde ir, quando a gente encontra essa vontade, e dá as mãos para ela 
e diz: Cheguei, porque não consigo mais partir. 
Então, parece, a mim, me parece, que são os outros que nos estranham. 
E, nos estranhando, não nos reconhecem. E, não nos reconhecendo, nos deixam. 
E, nos deixando, nos jogam para mais perto de nós mesmos. 
E assim, conseguimos ser o que sempre soubemos.
 E nos reconhecemos, e voltamos para dentro daquele fio que sempre nos ligou ao nosso centro.
De alguma forma, a gente sabe.
Eu sei.
E os outros não me reconhecem.

Mas, eu mesma, nunca me fui tão familiar.

Úvula


Não pedi para ser poeta. 
Nasci assim, e acostumei-me a, mil vezes, rimar as mesmas coisas,
 a ter uma palavra viva na outra, num tormento caótico e sem fim. 
Aceitei como se aceita uma marca de nascença: uma pinta, uma mancha em forma de mapa, igual aquela que a moça tem na canela.
Se me dizem grão, penso: turbilhão.
Se me dizem mundo, penso: você.
Se me dizem poema, penso: Neruda.
Se me dizem vida, penso: será?
Se me dizem qualquer coisa, qualquer vírgula, penso: ponto.
E se tenho que ser poeta, se devo ser confusão, que seja assim constante meu amor, 
meu delírio, minha inconstante servidão.
 Escrava, muitas vezes, de textos que nem parecem meus.
Não pedi para ser poeta, assim como não pedi para ser alguém. 
Não pedi para escrever a vida, não sofri por não ser pagão, não sei saber que não sei, 
mas sei que escrevo na contra mão. 
Batizei meus textos em púrpura, rabisquei seu nome na mão, 
feri meus lábios na úvula do seu beijo de clarão.
No céu da sua boca tem um livro que tateio em braile lingual.
Não pedi para amar perdido, não sei ser poeta limpo, não posso esconder seu rosto, 
nas minhas mãos sangrantes.
Não posso esquecer que as linhas vem amarradas como algemas, 
e me prendem num lírico sonho escrito, nas nuances de sua pele.

Beijo-te a fronte, poeticamente deliro, sofro mais vezes que o mundo. 
Sou poeta. 
Sou poeta e declino

Nua nuca


Eu queria uma canção para sussurrar na sua nuca.
Um sopro, uma língua nua
Sem pudor do meu desejo
Sem autor para nossas frases
Sem conselhos para nosso beijo

Eu queria uma canção para embalar seu sono
Um tom abaixo do seu ombro
Um tom acima da sua carne
Percussões a estalar no peito
Cânticos que renovam o novo

Eu queria uma canção para enlouquecer sua boca
Uma punção para biópsia futura
Uma razão para explorar sua alma
Um furacão para te levar para dentro
Das minhas devastações.

O Homem Nu


Era um homem nu a desenhar estrelas no próprio peito.
Era só. Um homem só, a cuidar de sua só solidão nos arredores de seu sexo.
Era um homem nu, tatuagem no peito, cuidando do feito de amar ninguém.
Eram vários homens dentro de um só canto que melodiava dentro do seu único pranto, soluçando dentro dele. O homem nu.
Nu em martírios ou tormentos. Nu em sua tristeza mal feita, 
ou nu em alegrias compradas de moças casadas, ou de meninas sem peito.
Era um homem nu a mastigar seu fumo, a usar poema como quem usa ópio,
 a ser spleen e ócio. Spleen e ócio.
Era um homem nu, de mente cheia. Barriga vazia. Um homem nude, num conto futuro.
A cada curva, o homem nu acredita em uma filosofia diferente. Por estar nu, nada o prende. Ele está como quem nada perde ou sente. 
Está inteiramente presente dentro de sua própria armadura inexistente.
É a proteção do homem nu. A certeza de que estando nu, nada tem a temer, 
nem defender, nem amar, nem sofrer. 
Estando como quem nada perde, ganha um pouco nas esquinas de sua vida
 e logo solta de suas mãos, suas conquistas.
O homem nu, o homem nu, o homem nu.  Veste a nudez como quem veste camisa. 
Ele está assim com tudo à superfície. Sua velhice, sua caduquice, sua lucidez, 
sua vontade de ser além da interna nudez. 
Ele é velho. Muito velho. E sendo velho pode despir-se. 
Quem envelhece sabe, de verdade sabe, encoberto sabe, sem saber sabe, 
que pode estar nu. Pode morrer nu.
Viver a velhice nua, sexo de fora, alma, tara, fire, falha, fogo.
O homem nu caminha com mãos soltas, não há bolso, não há bolsa,
 só um poço a colecionar histórias. Está nu, está cru, está sem pendências. 
Só caminha. Caminha só. Só nudez. Palidez. Sangue frio. Vontade morna.
Nu na carne. Nua tarde. Novidade de andar na pele. 
Mais nu do que nunca, justamente por estar na pele dele mesmo.

Miopia


Há um poema turvo dentro de mim
Um poema a turvar as vistas
E a fazer-me procurar em outras tantas
Alheias vicissitudes e clareiras obscuras.

Nos outros rostos
Existem rotas
E são nelas e em portas
Que procuro minhas saídas.

No despertar de um calafrio
Nos ocos espaços em torno da espinha
Nas linhas sujas desse poema
É que se escreve ou se caminha.

Há um poema turvo dentro de mim
Um poema a turvar minhas rugas
E a fazer-me procurar em outros prantos
As tristezas já não mais minhas.

Sorte sua se não tem poema
A turvar suas vistas puras
As minhas tão míopes e burras
Serão sempre prisioneiras das agruras.

Um gozo e um espirro
A bater-te a porta
Abra se tiver a rota
Da minha saída sem fim.

TEMPORADABERTA- O fingimento


 Está aberta a zona!
 Está decretada, a partir de agora, a escrita liberta e doente. 
 As meretrizes caminham em vestidos longos, e perfuram o chão com seus saltinhos pontudos; perfumam as taras todas com gotinhas oleosas delas mesmas. 
O cabelo, emaranhado na nuca, enrosca em dentes e fornalhas a queimarem as tripas alheias. 
 É um cheiro, é uma calda, é uma orquestra inteira retumbando entre pernas.
 As canetas estão cheias de tinta, e é proibido escrever à máquina, por ela ou com ela.
  Os poetas estão à solta e cheiram o pescoço das moças
 e deliram na dobra entre a cabeça e o ombro. Estão todos cheios de partituras e de lenços, e mordiscam os lábios pintados das concubinas e das meninas recém chegadas de Belo Horizonte, do Rio e de Goiás.
Está aberta a temporada da escrita propriamente dita, dos escritores malditos
 e dos sussurros que virarão livros. 
As pernas longas e brancas de Valentina enroscam nos poetas e nos destemperados e uivam na lascívia da carne e nas medidas e nas métricas obscuras. 
É necessário alguém sóbrio para copiar os versos que dos quartos berram os poetas.
 É necessário que tenha bom ouvido e que conheça, a distância, o que é legítimo e o que não será publicado. Deve diferenciar o que é gemido e o que é rima. 
Deve acender todos os candelabros pontualmente à meia noite, porque, caso contrário, 
os pensamentos morrem na entrada da madrugada.
É necessário também contratar mais funcionários. Mande chamar a Rosinha e diga a ela que a menina do quarto azul está precisando de uma pincelada nas maçãs do rosto porque está pálida, a pobrezinha. Chame o Wladimir para comprar mais gelo porque os copos estão todos cheios, mas a meretriz está com sede.
Está aberta a temporada dos papéis soltos e das promessas de quem será a musa escolhida: a prostituta que amarrará o poeta pela leitura de suas costas nuas.
Pode dizer, lá no fim da rua, que, final de ano, sai livro novo coberto pela poeira do nosso calabouço e pelas cruezas da nossa espinha.
Pode dizer. Pode dizer.                                                                                 
Vá lá na minha casa e diga para patroa que não volto mais, não. 
Que as crianças já estão crescidas e que a solteirice me chama todo dia e, por isso, 
meus poemas estão um saco de adubo fermentado. Diga que não posso mais viver com a certeza de que, na vida, é que vou vender mais livro. 
Vá lá na quitanda, seu menino, e diga para o fulano, a quem eu devo minhas cachaças, que não moro mais em casa de família e que vou escrever alguma coisa cheia de vinagre e que, se puder, pago outro dia.
Mande afiar as facas.
Mande Cléo vir até perto de minha perna e puxar minhas meias mais para cima porque estou com frio.
Está aberto o meretrício da leitura, da escrita anônima, da safadeza da métrica imunda.
 Vá comprar mais pão e me traga os sacos para escrever ali meus horizontes em giz.
Os poetas estão em fogo, estão ventaniando, estão caluniando, estão partilhando, estão inventando o que será a nova sensação das livrarias. Poema vai vender como água em deserto ao meio dia. Todo mundo lerá poema sem puxar a boca para o lado. Sem achar que é coisa de mulherzinha. Todo mundo que diz para o poeta escrever outra coisa, escrever auto-ajuda que dá mais tesouro, escrever bonitinho que não causa cólera, maneirar nas loucuras e nas metáforas, vai engolir a língua. 
O Poeta está dizendo: Calem a boca, seus inúteis, porque o dom não pode ser mantido numa caixinha colorida. Deu para entender? O Poeta está vivendo na podridão. 
É na torre imunda que vive uma Rapunzel que chora nas noites escuras. Ninguém, veja bem, ninguém vai tirar a menina de lá até que o Poeta dê a ordem de estar de volta o tempo das inocentes puras. Agora, ele só quer dizer a que veio. 
Você está entendendo, seu menino? Vamos parar com as cretinices, com a sem-vergonhice de achar que o Poeta não percebe o ar condescendente quando lhe perguntam do novo livro. Está fechada a temporada da cara de misericórdia pelo Poeta que sabe que escreve para pouca gente. Este é o prefácio do prefixo.
 É o “antes de tudo”, para que não fiquem dúvidas.
Está aberta a temporada das mulheres lindas e estúpidas, dos poetas cafetões da literatura que escrevem para vender, que ejaculam poemas como quem cospe o escarro. 
O poeta ri dos que o levam a sério. É tudo ironia. É tudo fingimento, não percebe?
Às gargalhadas é que ele lhe dirige estas palavras, imaginando sua cara de reprovação.
Lá da casa púrpura, ele ouve os tormentos e diz que está livre. Está prepotente, este Poeta. Está demente. Está cheio de soberba. Está um dramalhão.
Vá lá, seu menino, e chame o açougueiro, porque está aberta a temporada. 
Está aberta.