quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

A vista

Descobriu-se além de todos eles.
Cobriu-se apaixonado pela própria pele.
Coloriu a boca, rasgou as vestes todas,
gozou em gritos calibrosos,
e ardeu em febre.
Ardeu em febre.

Cobriu-se além de todos eles.
Descobriu-se apaixonado pela própria pele.
Limpou a boca, costurou as vestes todas,
chorou em sussurros límpidos,
e esfriou até a morte.
Esfriou até a morte.

Caminhou como quem caminha ao vento.
Achou como quem acha ouro.
Sentou num muro alto.
Apreciou a vista dele mesmo.
Apreciou a vista dele mesmo.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

1+1

Estava afoita fazendo compras no supermercado.
Demorava mais por conta do antigo hábito de só comprar em números pares. 
Dez laranjas. Nem nove. Nem onze.
Quatro maçãs. Nem três. Nem cinco.
Muitas vezes, perdia-se na conta, e era necessário voltar do início. Um, dois...
A vida era para ser vivida, feita e dirigida em pares. Essa é a verdade, pensava consigo.
Era feliz assim.
Não sabia, mas, perto dela, estava um senhorzinho. Noventa anos.
Esse comprava apenas um de cada. Um pepino, uma cenoura, um mamão.
Ao chegar em casa, ele, pacientemente, repartia tudo coma esposa.
Eram felizes assim.

A beleza da vida: cada um multiplica do seu jeito.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

O alvo

Nem só, nem nunca
nem teto, nem burca.
Somente lindo e plenamente
enroscado na boca tua.
E, em caso de choro ou espanto,
que seja teu, meu encanto
que seja lua, tua noite
que seja cega, tua foice.
Que não haja cortes
nem mistérios.
E, em caso de riso ou pranto,
seja eu, teu sopro e canto
que sejamos nós, sensatos arqueiros
a mandar nossas flechas além de nós mesmos.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

O sexo de cada um (Ou: Sorveteria) (Ou: Comer faz bem)

Era imensa.
290kg.
Sobrava em todos os lugares, e seus pés minúsculos mal podiam com ela.
As mãos, também incrivelmente pequenas, acompanhavam toda a falta de proporção.
Menor que os membros, somente o marido. Franzino, levemente cabisbaixo, submisso diante daquele tamanho de mulher com a qual casara.
Entraram na sorveteria. Ela, como sempre, a frente. Decidida. Olhos firmes de quem sabe exatamente o que quer. Logo sentou-se ao lado de um casal. Antes, tirou a bolsa da outra moça que ali repousava.
Essa bolsa é sua? Perguntou em tom de crítica.
A vizinha sorriu, tirou a bolsa da cadeira, e deu espaço para a outra sentar-se.
O marido veio em seguida. Encontrou a mulher aflita, a espera de sua taça gigante. Pedi um dos bons. Disse a esposa. E completou para que todos ouvissem: Não quero nada diet, hein? Garçonete? Olha, não me traga nada diet.
A pobre atendente, arregalou os olhos e disse: Jamais. Não, senhora. Vai vir tudo como o pedido.
Assim que chegou a taça, a macro mulher devorou em segundos em colheradas avassaladoras. O marido, cúmplice daquela orgia, dizia:
Veja, benzinho, como aqui que está escorrendo. Veja, aqui tem mais um pouco.
Ela lambia a taça, a colher, os beiços.
Acabou de devorar tudo no momento exato em que chegava a taça do marido.
Ele, educadamente, ofereceu a sua mulher uma provada daquela maravilha.
Ela negou, porém, prontamente, com outra colher em punhos foi cavocando a sobremesa do parceiro. E ia dando sua ordens. Voz forte:
Fulano, coma essa fruta que está embaixo. Coma. Coma esse creme. Não quer mais? Coma tudo. Olha este pedaço, que beleza.
O marido não respondia. Apenas tentava salvar uma parte ou outra, já na certeza de que não sobraria nada para ele. A mulher mandava que ele comesse, mas atacava tudo sem deixar espaço para a colher dele.
Que lástima, ele pensou. Mesmo assim, ao final, esticou as mãos para ela. Esgotados. Cada um faz sexo como sabe. Essa era a verdade.
Ficaram ali, dedos entrelaçados. Acenderiam um cigarro, se fosse permitido.
O marido foi pagar a conta e disse: Vou buscar o carro, já venho.
Demorou. Segurando no volante, respirou fundo. Cúmplice. Macho.
Parou o carro frente a porta; a mulher já tinha se arrastado até a calçada.
Foram embora. Ele decidido a tomar uma ducha, ela decidida a parar na padaria.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Para tudo tem um jeito

Tinha compulsão por compra.
Decidiu procurar um especialista.
Saiu com a receita em mãos.
Comprou duas caixas de remédio. 
Depois, foi de psiquiatra a psiquiatra, só para ter remédios para comprar.