quarta-feira, 30 de maio de 2012

Breu (Ou: Amor)


Ele fechou os olhos e procurou no breu, em sua escuridão, um desejo para desejar, um delírio para saborear, uma ilusão para ressurgir, um botão para apertar.
Ele explorou no fundo do seu globo ocular uma imagem de registro para seus momentos fúnebres. Não havia.
Sabia que, em algum minúsculo tempo, num tempo em que seus horizontes expandiram, seus lábios umedeceram, sua língua calou no palato, existiu um breu produtivo, um sentimento em carne viva e ele, ali, procurava nas angústias de suas memórias, uma memória para chamar de sua.
Tolheu o que não servia, puxou para si redemoinhos de tudo o que girava em sua cabeça fértil e infantil, e percebeu que, no viver atropelado, nas caricaturas que fez de si, nas amarelinhas que pulou roubando um quadrado, deixara para trás, o seu melhor.
Ele fechou os olhos e procurou no breu, em sua escuridão particular, e nada achou ali a não ser aquela mesma frase que já disse a quem amou um dia: Não acredito em amor.
Foi então que se perdeu. Foi exatamente ali que se desfez o que nele tinha se feito desde o nascimento.
E agora, fechava os olhos e procurava no breu. Sua escuridão era densa e balbuciava coisas em sua garganta rouca.
Olhou para o lado e viu alguém e disse: Recolha aqui meus cacos, pelo amor de Deus. Mas era o Diabo a olhar em seus olhos. E ele respondeu: Eu não acredito em amor. 

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Dr. Alfredo (Ou: A boa mãe)


Toda mulher sonhava em casar-se com um médico. Talvez, toda, seja um exagero, mas muitas sonhavam em constituir uma tradicional família ao lado de um bem sucedido homem da área da saúde. Um quase herói, salvador da espécie humana, operário em prol da qualidade de vida e longevidade do seu semelhante. Isso, é claro, era no tempo que o médico dedicava-se a essas banalidades.
Hoje em dia, muitas fêmeas ficariam com seus coraçõezinhos pulsantes e românticos batendo velozmente, caso conseguissem fisgar um bom jogador de futebol. Nada como ter um marido que ganha em euro.
Mas, o caso que conto aqui, é diferente. É um caso típico de mãe. 
Uma boa mãe,  mãe zelosa, protetora e perspicaz, quer mesmo é casar-se com um pediatra. Que maravilha durante uma otite, catapora, bronquite, pneumonia ( nos casos mais graves) ou, até, uma simples frieira, poder olhar para seu lado na cama e dar de cara com um pediatra. A mãe, com as bochechinhas rosadas e o sorriso alegre, em questão de minutos resolveria o problema, sem precisar ligar para ninguém, enfrentar uma fila no pronto socorro, sem imaginar loucuras com sua cabeça fértil e apavorada. Bastaria um pedido, um olhar, no máximo, uma piscadela, e seu protetor, seu herói da penicilina, do estetoscópio, levantaria seus braços fortes e colocaria em uso seu cérebro privilegiado, para aquela casa voltar ao seu sossego habitual e aquela mãe respirar com um alívio que só as mães conhecem. É aquele que se sente ao olhar um filho saudável a correr pela sala, enquanto a empregada faz saltos mortais na tentativa de salvar um cristal.
Quando Suely comunicou à família que estava deixando seu amado Pedro, pai de seus três filhos para casar-se com o Dr. Alfredo, foi um choque. Maior para os homens da família, para os maridos das amigas e para as solteiras ou casadas sem filhos. As mães fizeram uma cara que seus maridos julgaram ser espanto, mas que, na realidade, era inveja pura. Era uma sensação de incompetência. “Por que não pensei nisso antes”
Pedro tentou de tudo. Argumentou, chorou, ameaçou, mas Suely disse que era preciso. “Sim, eu te amo, Pedro, mas a questão aqui é o bem estar das crianças”.
O homem questionou sua capacidade como pai. Será que fez algo errado? Não. Tinha conversado com a barriga da mulher enquanto ela gestava aqueles bebês, mesmo achando que de nada serviria. Leu os livros especializados, assistiu aos partos, segurara as mãos firmes da mulher parindo. Até hoje não sentia o mindinho. Tinha ido a todas as reuniões de escola, consultas médicas, aniversários em buffets que eram a própria ilustração do inferno. Todos estavam em boas escolas, faziam inglês, natação, dança, piano. Frequentavam a fono, dentista, psicólogo. Fora as viagens, os passeios de final de semana.
Passaram-se três meses. Pedro, tomado de uma gota de coragem, foi até o apartamento da esposa com o propósito de fazê-la desistir daquela loucura. Tocou a campainha e, para sua surpresa, quem atendeu foi o próprio Dr. Alfredo. Trocaram um mínimo sorriso. Um leve balançar de cabeças.
Ele entrou, já não tão corajosamente. Podia estar enganado mas teve a impressão de que o Dr. Alfredo tentara derrubá-lo usando sua bengala. Aquele velho cretino.
Suely veio sorrindo abertamente e ficou surpresa ao ver o ex marido parado no meio da sala. Ele pediu um minuto de sua atenção e foram ao escritório para ter a conversa final, como ela mesma disse.
O pobre marido, ex marido, mais uma vez humilhou-se, fez pedidos, promessas e, por fim, usou um argumento que jurou que não iria usar, por ser mais um constrangimento que era imposto sobre ele mesmo:
− Suely, pelo amor de Deus, o homem tem oitenta anos!!!!
− Que baixo que você é, Pedro. Fique sabendo, que o Julio tem cinco anos. ( Julio era o caçula)
− E o que tem isso a ver, Suely?
− Tem que se o meu atual marido, meu marido pediatra ( disse isso com orgulho e certa prepotência) fizer a gentileza de viver mais 10 anos, já terá sido de grande valia. E me dê licença!
Virando as costas foi até a cozinha porque era hora de preparar a gemada do Dr. Alfredo.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

O susto




— Zeca, o Patrick expeliu uma pedra de dentro no nariz.
— Expeliu o que?
— Uma pedra, Zeca.
— Uma pedra, como, Lucia? Tipo...igual um cálculo renal? Uma pedra na vesícula? Tem isso no nariz, também?
— Não, Zeca. O menino pegou a pedra no jardim, achou fofa, enfiou no nariz e, hoje, expeliu enquanto eu dava banho nele.
— Quando eu falo que nossos filhos fazem coisas estranhas, você briga comigo.
— Para de falar que os meninos fazem coisas esquisitas que eles ouvem, acreditam e viram adultos estranhos.
— Igual sua tia Zuleica, né, Lucia?
— Tava demorando para a tia Zuleica entrar na conversa.
— Eu me preocupo, Lucia. Os meninos podem ter herdado os genes esquisitos da tia Zuleica. Vai me dizer que é normal o que ela faz?
— Pela milésima vez: a tia Zuza não é esquisita, ela só tem uma profissão um pouco incomum para uma mulher da idade dela.
— Lucia, acorda! A velha faz striptease no baile da saudade.
— Não, não, Zeca. Ela faz dança erótico-artística para senhores da terceira idade.
— Lucia, ela é uma velha de 86 anos que fica pelada para velhos de 95.
— Ela já passou por muita coisa, Zeca. Dá um desconto.
— Muita coisa. Muita coisa mesmo. Aliás, ela já passou na mão de muita gente, também, né, Lu? Ou você já esqueceu do Didi? Do seu Aderbal da farmácia? Do Helinho da lotérica? E o Jorge! O Jorge, sim. O menino ia fazer 19 anos. Teve até aquele episódio envolvendo o fusca do pai do Jorge e a cueca presa na perereca.
— Que história é essa Zeca?
— Tá vendo? Você vive defendendo a tia Zuleica. Acha a velha uma inocente envolvida nos laços podres do sistema, e nem sabe da missa a metade.
— Eu só sou justa. Nunca defendo a tia Zuleica. Só tento entender as atitudes dela. Mas que história é essa do fusca?
— Antes que você fale qualquer coisa, foi seu pai que me contou. Foi assim: a tia Zuleica chamou o Jorge para ir dar uma volta de carro. Ela não tem mais carta, afinal o descaso com a segurança de trânsito não vai tão longe e tiraram a carta da velha. O Jorge, para fazer bonito, pegou o fusca do pai, e pegou a tia Zuza na saída do, digamos...trabalho. Sabe-se lá o que foram fazer. O fato é que a tia Zuleica teve uma câimbra e o garoto se assustou, tentou chamar ajuda e acabou todo mundo parar na delegacia com a tia Zuza com a cueca presa na perereca. Seu pai que teve que ir lá pagar fiança.
— Gente! Como assim, na perereca? Você quer dizer na...
— Não, Lucia! Na perereca da boca. Na prótese da tia Zulmira.
— Ai, Zeca, que susto. E eu achando que dessa vez a tia Zuza tinha aprontado pra valer.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Trilha


Ela vinha caminhando numa longa, longa noite. E seu olhar tinha um nada, quase inteiro, a sombrear as vistas. E os cílios, curtos, retos, estavam baixos não de tristeza, mas de emoção.
Ela vinha caminhando numa longa, longa noite. E suas mãos estavam abertas a procura de coisas para tatear. Era em braile que ela aprendia. Mas não era cega. Via.
Ela vinha caminhando numa longa, longa noite. E suas pernas iam fortes e musculosas. Não era ginástica. Era de uso extremo em subidas íngremes.
Ela vinha caminhando numa longa, longa, longa noite azul. Noite prenha de notícias. Noite parideira.
Ela vinha caminhando numa longa, longa, longa noite carmim. Não era sangue.
Era fogo.
Ela vinha cambaleando numa longa, longa noite sem fim. Mas não era eterno. Era medo.
Ela vinha cochilando numa longa noite que acabaria ali. Mas não era fim. Era tá.
Ela vinha acesa em fogo carmim, numa noite longa azul, com seus cílios curtos e baixos, e um nada, inteiro, nas pupilas limpas.
Ela vinha, então, agora, nesse instante, bem acordada, reluzente porque aprendeu o que faltava, inteira porque  ela mesma consumiu seu nada, caminhando duramente, seguramente nas estradas e calçadas.
Ela vinha feliz e perfumada, sabiamente articulada, espertamente afastada do que não era seu.
Pegou o que era dela, aqueceu o coração e as panturrilhas, subiu no monte mais alto e viu que era o monte certo porque a vista era linda.
Ela voltou numa longa, longa manhã, amando loucamente o que encontrou.
Ela voltou numa longa, longa manhã. Eterna. Agora sim, eterna.
E nunca mais voltou para as trilhas escuras de sua solidão.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

O leitor dos ventos


Pegou Baudelaire e se assustou. 
Beijou Machado e derreteu. Quis Kafka e gelou. Engoliu João e empalideceu.
Era um alimentar de coisas estranhas, um saboreamento de construções novas. 
Era o exílio do que cria, era o decidir pelo afogamento.
Ele escrevia na latrina, no difícil, na imundice; tinha um assopramento de angústia, 
de calúnia que expiravam no seu peito. 
Catavento, catalouco, catanicho, catalouça, tiragosto, tira tento, sem juízo e sem dinheiro.
Era só, era fingimento, era um oficial de causas mortas, era leitor de inúmeras portas. Portas que abriam para si e outras que fechavam seus anseios.
Era tido como não era, era sua própria forma e sua própria ausência.
Os livros, a estante toda, ventavam sobre ele e o Poeta se deixava ir pelos sopros, pelo ares, pelos coros, pelos mares...Ia sem vela, ia abraçado ao mastro, absorto, livre, caducando malandrices, desafinos, desafetos. E o verso nascia no cérebro ou na tripa e descia como caxumba deixando o poeta estéril para todo o resto. Pensava em prosa, escrevia em rima, vivia aéreo, cheirava ópio. Era na execução dos fatos que ressurgia, era na badalada que fazia 12 horas. Era uma produção, ora brusca ora metafórica, e ao mesmo tempo era um crédulo, era um bicho, um siso, um doente, mas só por fora.
Ele era a foice que, reluzente, ceifava sua vida e limpava sua cara.
Era um remédio para sua podridão, a podridão da rima, porque no resto era tara.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Monólogo do divórcio (Ou: Ao telefone) (Ou: A cueca boxer)


─ É a puta que pariu, viu, Clodoaldo?  É a puta que pariu! 
Ou você paga a pensão das crianças ou te coloco na cadeia. A lei Maria da Penha está aí pra isso. Que me interessa que a Maria da Penha é pra mulher que apanha, Clodoaldo? Eu digo que ficar com você foi pior que apanhar com cabo de vassoura, seu cretino. 
Olha, ou você deposita ou eu acabo com sua vida e da Sharon ninfeta com quem você vive. Eu não sei onde eu estava com a cabeça quando me casei. Eu devia estar bêbada. Me deixei enganar por um abdômen de tanquinho e uma conta no banco. Que ilusão! Que ilusão! Não desliga, não, Clodoaldo, que eu to falando. Olha, meu advogado está entrando contra você. Eu te deixo passar uns dias no xadrez e tenho certeza que será um sucesso na cadeia. Suas horas de malhação não vão te deixar passar vergonha. Você vai ser a miss tanquinho, Clodoaldo. Você pensa que eu não sei que você deu um carro novinho para a Sharon? Você pensa que eu não sei? A Beth me contou tudo. Disse que te viu no restaurante da rua Amaury, com a Sharon e as amigas dela. Disse que viu você fazendo declaração pública para aquela vagabunda e entregando as chaves da Mercedes.
 Ela me falou na joia Cartier que a Sharon carregava no pescoço, disse que é capaz da moça ter que fazer RPG pra consertar o estrago do peso do peito e das joias. A Beth me contou que você está usando aliança de compromisso, Clodoaldo. É Tiffany? É Tiffany, Clodoaldo? Eu não estou chorando. Eu não estou chorando! É que eu fico emotiva porque faz tempo que não vejo uma Tiffany legítima pessoalmente. Ora, as minhas eu vendi – né, Clodoaldo? – para pagar a terapia. Sim, sim, tudo. Sim, até o relógio das bodas. Valor sentimental? Eram Bodas de Papel. E daí? Eu tive que pagar o Boris, meu terapeuta. Que to dando pro Bóris, meu filho? Se eu tivesse dando pra ele não precisava ter vendido o relógio pra pagar as consultas. Mas taí que você me deu uma boa ideia: vou dar pro Bóris e poupar o dinheiro pra comida, meu filho. Do jeito que a coisa vai, a Sharon vai abocanhar todo nosso patrimônio e nossos filhos ficarão sem arroz e feijão. Eu não tô exagerando, não. É a pura verdade. Ou você pensa que a Beth não me contou que você já está construindo uma casa para aquela vagabunda? Piscina. Piscina. A Beth me contou que foi lá ver a obra com você. Aliás, a Beth sim é uma pessoa que pensa em mim. Ela me disse que você tem usado cueca boxer. Você que sempre odiou cueca boxer, hein, Clodoaldo? Quanto que eu te pedia para dar uma repaginada nas cuecas! Mas, agora, ah, agora é tudo para agradar a Sharon. Como assim, agradar a Beth, Clodoaldo? O que a Beth tem a ver com a cueca? Ela jamais ia fazer uma coisa dessas comigo. É... Agora... você falando, não tinha pensado como ela sabia das cuecas. Eu não to chorando, meu filho. Não to chorando. Você, a Beth, a Sharon, podem comprar uma cama King Size Plus Master e dormirem todos juntos. Faça isso, seu cretino. Leve todo mundo para sua cama, mas deposite a pensão. Tchau, Clodoaldo. Pra mim chega! Vou ligar pro Boris. Quem sabe ele não aceita pagamento com vale refeição. Eu não estou chorando!

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Deixa


Deixa disso. O amor é maior que o rito.
Deixa de cara, de para, de manha. Amor é tara, é fala, é gana.
Deixa de onda, de cores confusas, de saudades obtusas.
Deixa de vir e ir e ficar onde não estou.
Ame só o amor, ame só meus olhos e meus traços.
Engana-se quem vive na amargura dos retratos
Dos sonos antigos, das sujeiras nos pratos.
Deixa disso. Vem ser infinito.
Vem casar num horizonte traçado nas minhas costas nuas.
Vem dormir onde não se dorme
Em montanhas e vales e planícies artificiais.
Vem dourar. Deixa disso.
Vem ser uma canção transpirando nos meus ouvidos.
Deixa disso, vai?
Vem ser o amor. Só isso.
Vem experimentar, deixar de ser siso.
Quem não viveu dentro de alguém, não sabe o que é a urgência da vida.
Viver dentro e morrer, um pouco, fora. Explorar e urgir por horas.
Vez ou outra, tomando água.
Deixa disso porque eu não vou embora.
Deixa disso porque minhas malas estão aqui, ainda
Fica vai? Fica porque as minhas roupas ainda secam nas suas, e
O mundo, o tudo, o de mais puro e o de mais sujo ainda precisam de nós.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Um passo a frente, por favor.


O palhaço (Ou: Medo de Escuro)


Fechou os olhos na espera de um pensamento.
Ele sabia que teria por ali, nos arredores de suas vivências, nos subúrbios de seu palato, uma ideia a estalar seus ânimos.
Bastava um só encontro. Consoantes e vogais. E, então, diria exatamente o que sentia.
Ele era um palhaço só, na solidão de seus vermelhos.
Ele era um palhaço cru, nas manifestações de seus azuis.
Ele era um palhaço nu, nas crucificações de um picadeiro.
Que solidão era aquela que, compartilhada, ficaria mais só? Ó.
Ele poderia dizer a todos, tudo o que pensa, mas não diz.
A vida dele era tão dele, mas aqueles todos, outros, doidos, hipócritas, em órbitas alheias a dele, insistiam em dizer coisas podres em seu ouvido de palhaço.
Com que direito?
Era nisso que o palhaço pensava, enquanto abotoava seus botões.
Pensava que se tivesse uma só aventura, um jeito delicado, porém, eficaz de afastar todos os outros animais que viviam debaixo de sua tenda, o faria.
Mas era nisso que se perdia. Quando dava por si, tinha explicações na ponta da língua.
Para que?
Não sabia ele que a vida era só dele, e para ele que viviam suas próprias decisões? E que, uma vez decididas, eram para ele só vividas em caminhos únicos que caberiam no centro de sua mão?
Mas, no circo, viviam críticos. E os críticos sempre sabem o que dizer.
São deles os julgamentos todos, e eles acreditam saber o que na verdade não sabem.
Eles nem conhecem o palhaço. Não sabem por quem seus lábios imploram, nem suas lágrimas choram, nem sua língua grita, nem seu pranto dobra.
Quem são eles que só aparecem no fim do espetáculo? Que nunca levantaram uma lona, nunca esticaram um vestido, nunca domaram um menino, nunca sujaram a cara?
E o palhaço, poeta, patife, remoia essas coisas, enquanto ria.
Riso de quem sabe. Riso de quem foi viver a vida e não volta mais. Pelo menos, não para os mesmos horizontes.
Terminou de se abotoar, pegou seus sapatos engraçados, piscou para sua própria sombra, deu as mãos com sua semeadura e foi.
Foi ser palhaço. Foi ser feliz. Talvez, não de imediato, porque a vida tem rugas, mas foi ser o que deveria ser. A boca vermelha borrada de beijo e o azul do olho roubado do céu da madrugada.
Senhoras e Senhores, o circo está aberto. E o palhaço foi viver a vida que vocês só sonham, porque são covardes ao extremo, e tem medo do escuro da dúvida.


segunda-feira, 7 de maio de 2012

Treino de crianças


Mario, você conversou com o Guilherme antes desse jogo?
─ Claro. Expliquei tudo. 
─ Sei, não. Ele tá com cara de choro.
─ Claro! O técnico deixa o menino no banco!
─ O time é grande, Mario. O homem precisa fazer um rodízio da meninada. Você sabe como são os pais. Um bando de loucos. Dificilmente alguém é como nós. Lembra daquela vez que a mãe do Paulinho jogou uma lata de refrigerante na cabeça do juiz?
─ O sem vergonha expulsou o filho dela, Mônica! Fez muito bem. Eu também jogaria.
─ Como assim? O menino deu um golpe de judô no outro do mesmo time. Justo aquele que era asmático.
─ Mônica, isso aqui é futebol, minha filha. Não é balé, não. Que bom que deu o golpe. Além de bom no futebol, ele é ótimo em luta. Parabéns pra mãe dele que está criando bem o menino. Eu jogaria a lata também
─ A lata estava cheia, Mário. O pobre do juiz foi hospitalizado. Dizem que saiu do campo completamente fora de órbita. A Soninha me disse que, enquanto colocavam o homem na maca, ele cantava a música da Wanderléa. Sabe aquela? Achei o fim. A gente tem que saber separar as coisas. Eu sei muito bem que isso aqui é só um jogo de crianças. Quero que o Guilherme saiba que a mãe dele, pelo menos, tem maturidade.


─ Olha, lá, Mônica, vão colocar o Guilherme.
─ Ai, meu Deus. Vai filho! Corre! Vai! Pega a bola, pega a bola! Dribla, Gui. Dribla! Boa, filho. Não chora, Guilherme. Valeu, filho!!!!
─ Para de gritar, Monica. Tá atrapalhando o garoto.
─ Sou mãe, Mario. Se eu não der força pro menino, ele cresce com baixa auto-estima. Olha lá! Aquele grandão tá perseguindo o Gui. Chuta ele, Gui. Mamãe tá aqui. Não chora, filho. Não chora!
─ Para, Monica. Você vai arrumar confusão.
─ Não paro, não. Grito mesmo. Vai Gui. Você tá indo muito bem, filho. Você é melhor que todos eles, meu amor. Eles, perto de você, são uns frouxos, meu bem.

As outras mães que, até então, estavam quietas, olharam para Monica com o olhar que só quem já viu uma mãe ofendida conhece. É um olhar que varia entre a fúria de um neanderthal, e a cara de uma hiena selvagem e enlouquecida. Para saber bem que tipo de olhar é, basta chegar perto de uma mãe e dizer: Meu filho é melhor que o seu. Ela pode ser a Indira Ghandi. Pode ser pós- graduada em meditação. Pode estar até em coma. Veja se ela não arregaçará os dentes. Veja se ela não pegará uma lata de refrigerante cheia para tacar em você.

Mas, já era tarde para qualquer volta. Mário até pensou em puxar Monica, mas uma manada de mulheres já estava vindo na direção dela.
─ Corre, Monica! Corre!

Deu tempo do juiz - o mesmo- traumatizado, esconder-se atrás do bandeirinha.

Tudo isso já tem um mês. As aulas de futebol estão suspensas. Mônica recupera-se bem. Os médicos estão bem esperançosos. Mario tem treinado Guilherme no quintal de casa. E entre um drible e outro tem ensinado ao menino uns golpes de judô. Nunca se sabe...

A sorte da menina que escrevia (Ou: Naftalina)


Era quase naftalina. 
Era esse o cheiro dos seus escritos, das suas parlendas, dos seus enunciados. Uma leve rouquidão onde já teve um grito.
Onde se escondiam, agora, as metáforas, as rimas fáceis, os choros contidos em uma melodia repetida em versos, ou em prosa, ou em conto ou em qualquer coisa que se mexa na boca? Na língua?
É isso! Na língua que, viva dentro da boca, repetia palavras, muitas, amarradas em dança solta, com véus, com guizos, com pequenos cordões enrolados num ditongo ou num hiato.
Eram modelos, às vezes repetidos, às vezes, uma vez usados, mas eram modelos...falhos, humanos, crescentes, dourados. 
Agora, era uma rampa que ia em mão única para beira de um penhasco e cadê palavra, cadê história, cadê ofício, cadê dicionário. Era assim? Era um capricho do cérebro? Alguma coisa se perdeu dentro das curvas e ondas e neurônios e cabeleira e olha que nem era cachaça, nem era falta de uso corriqueiro. Era só mesmo um afastamento da escrita, das teclas pretas e brancas, do seu piano de gramática. Mas a leitura, que juram servir para a não-morte do pensamento, esteve com ela sempre. E nada.
Dá uma vergonha ler coisa boa; dá um sentido de escrita pessoal precipitada. Um amargo sentimento de total perda de tempo onde o tempo pode até ser inventado.
Era essa a sorte da menina que escrevia. Era o declínio do raciocínio, da linguagem, da matemática dos versos, das contas, das notas, das ausências, das presenças de suas fugas.
Ela, a menina, vai dando soquinhos de punho fechado e as coisas pulam sobre a mesa, e isso vai dando um caldo, um passa tempo, um som surdo, um som tocado e então vem aquele estalo que talvez a escrita não seja mesmo para ela, seja só por ela, seja para não publicação e sim para auto construção e, então, tudo bem.
Ela fica catando umas coisinhas sobre a cama e pensa em inúmeras rimas, constelações inteiras, subúrbios de pensamentos e vê sua imagem no vidro da janela e ela está bem, está justa, está séria, está decidida, está comedida, está uma colisão...Sai correndo para pular a vida como se pula corda, e o cheiro de naftalina vai com ela.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Pra casar. (Ou: O caso Wellington Tererê)


Começou roendo as unhas. Toda mãe, em algum momento, nem que seja breve instante, rói a unha. Seja por desconcerto, por ódio, angústia, solidão, embaraço, ou qualquer outra coisa, ou ainda todas elas.
Essa, roía as unhas, por aquele minuto, enquanto, diante dela, Jorginho, filho único, de mãos dadas a namorada fazia cara de: “Então, mãe, diz alguma coisa”.

- É um prazer conceber, digo, conhecer você!
- Valeu, tia.

A menina tinha as pernas colocadas uma ao lado da outra, mas os joelhos estavam juntos, e os calcanhares ficavam distantes. Posição de jeca, pensou a mãe. Roia. O esmalte já tinha ido, faltava a borda do dedo, o dedo em si, talvez, com esforço, os cotovelos.

- Você faz o quê, meu bem?
- Tipo assim, em que sentido?

A mãe sentia o coração claramente dar soquinhos, e o fígado, aparentemente, tinha saído para dar umas voltas. Professora universitária, pós graduação em Boston, antropóloga, divorciada, frequente entre os que entendiam em que sentido ela falava as coisas.

- Pergunto se você estuda, trabalha... pensa....? ( A última palavra foi quase um balbucio)
- Ah!Tá! Tipo, já estudei, mas não gosto não. Tipo: Se der um dia faço supletivo e termino o colegial.
- Colegial? Quantos anos você tem, benzinho?
- Tipo, 21, mas nas revistas sai que tenho 18.

A mulher ria de nervoso, um risinho agudo, baixinho. Uma coisa nova. Ela poderia jurar que vinha de algum orifício desconhecido da sua alma. Era isso. A alma estava definitivamente furada.

- Você sai em revista? ( o risinho ficou mais alto)
- É, as vezes, por causa do caso do Wellington Tererê.

Estava concluído. O pâncreas resolveu acompanhar o fígado. A respiração acompanhava os soquinhos do coração. Parecia um soluço. Ela estava viva dentro de um soluço. Olhava a moça, os peitões armados. E as coxas? Cada uma parecia que tinha trazido uma amiga para acompanhar. Rijas, grandes, cavalares.

- E quem seria esse moço?

Daí, o filho que, até então, estava se segurando, não agüentou:

- Mãe!!! Wellington Tererê!!!! O melhor atacante da atualidade. O chute dele é uma bomba, mãe. Acabou de assinar um contrato na Europa. Milhões! O atacante do século.

O garoto estava chateadíssimo. Desdenhar da namorada já era o fim. Agora, não conhecer Wellington Tererê, era demais.
A mãe fez cara de ah ta e continuou:

- E que caso foi esse, benzinho (percebeu que era a terceira vez que chamava a moça de benzinho)
- Tipo, ele é meu marido. Daí, ele chegou outro dia e eu falei: ó tem um cara na parada. O nome dele é Jorginho, tipo, é cara fino e to te dexano.  Daí, ele me espancou. Eu fui no programa de TV e dei parte dele na polícia. Ele vai me pagar um nota. Vai ganhar em euro, né?

A mãe, já estava de pé, remexia nas gavetas a procura de um barbitúrico. Qualquer um servia. Podia ser antiácido, também; ou um valium, uma balinha de menta, um 38. Qualquer coisa valia.
Pensava nas economias que fez. Na primeira escola do Jorginho. Bilíngüe. Bilíngüe, meu Deus. Colegial no exterior. Lembrou da viagem à França para o menino conhecer a cultura, antes de começar o curso de francês. E a faculdade? E a faculdade? E os planos de pós graduação? E o parto? O menino não nascia nunca. Desgraçado. Se soubesse, deixaria ele lá entalado. Para agora, ele aparecer com essa, essa, essa, abominação. Cadê aquele cretino do Maurice quando eu preciso? Ah, ele vai ter que fazer alguma coisa. Ele que pegue esse menino e afaste dessa, dessa, dessa, Sharon. Que pai é esse que não dá conselho? Que não sacode o garoto? Onde já se viu?
A mãe puxava os cabelos das têmporas, mas Jorginho já tinha ido com a fulana para o quarto.
Cinco horas depois, a tal foi embora e Jorginho apareceu na sala. Achou a mãe sentada no chão, abraçada ao catálogo do Louvre.

- O que houve, mãe? A senhora não está bem?
- Por que, meu filho, por quê? O que foi que você viu nessa moça?
- Mãe!!!Ela é mulher do Wellinton Tererê, mãe! Pô! Wellinton Tererê!

O rapaz saiu. Orgulhoso da sua conquista. Com essa, ele casava. Sim, senhor. Essa valia a pena!