quinta-feira, 21 de junho de 2012

Janela (Ou: Divã) (Ou,ainda: TOC)


Ela olhou pela janela.
Estava sentada de lado, com os pés perto do estômago, as pernas encolhidas. Os pensamentos pareciam sair pela fresta, coroados de ilusões, de uma juventude esfacelenta, de um desejo tardio de ser doce e amada e analisada. Deixou na sala os outros móveis, a cômoda com os livros, as capas azuis das publicações de peso, as flores, que como ela, secas, fitavam o ambiente. Abandonou por minutos o terapeuta, que a compreendia, que a torturava. Mal sabia ela que, no íntimo, a amava sem ética, sem palavras, somente um condenado em seu próprio consultório, em sua própria profissão, em seu egoísmo de não deixá-la partir. De querer ser sua muleta, seu alquimista. Um mágico que descobre intenções, que não opina, mas que a faz dormir embalada em seus braços, em suas poções, em seus medicamentos.
Ele disse alguma coisa e ela sorriu sem ouvir, deixando-o na dúvida. “Será que repito?"
E o perfil, perfeito, da moça, dava a ele a sensação de perdê-la para a simetria.  A sensação de não alcançar dentro dela o que ela havia perdido um dia, e que a trouxera até ele.
Viu que ao lado, na têmpora, havia um precoce fio branco que ele poderia jurar não existir na sessão passada. “Ela vai envelhecer ao meu lado, deitada no divã, às vezes, sentada na poltrona. Será minha, assim como as manhãs são dela. Dependerá do meu sim, da minha janela, do meu amor”.
Ela o olhou novamente, dessa vez como se estivesse ali. Como se regressasse da distância, do distante.
— Acho que não venho mais. Ela disse.
Ele sentiu a face branca e fria. Engoliu uma saliva imaginária, porque sua boca estava seca desde o momento em que ela chegou.
— Como?
— Não venho, entende? Não vou continuar o tratamento.
E como ele não fez nenhum comentário, ela resolveu acabar ali a conversa.
Calou-se como se nunca tivesse dito nada. Abriu a bolsa lentamente e procurou alguma coisa. Tirou um cigarro meio amassado, aparentemente guardado fora do maço, no meio da carteira, do batom, da agenda nunca consultada, dos papéis antigos de estacionamento, do extrato do banco.
Abaixou novamente a cabeça e tocou no fundo e trouxe à tona o isqueiro amarelo. Acendeu.
  “Pensei que ela não fumasse mais”, pensou ele.
Não fez comentário. Não disse que não era permitido fumar. Não mostrou indignação com um vício que ele julgava estar morto. Resignou-se. Consentiu. Quase sentiu alívio por ela estar ali ainda.
— Carolina...
Ela não respondeu. Tragou profundamente e levantou-se.
Ele disse:
     — Eu ia dizer que nossa sessão terminou e...

Ele ficou de pé como se estivesse seguindo um protocolo. E Carolina ali, diante dele. Ele estático e ela em movimento. Ela pegou suas mãos e o trouxe para junto dela. Ele foi. Então, ela tocou seus lábios, tragou dele e o levou por sepulturas e orquídeas. Ele, sendo beijado, viu seu cérebro trabalhando ao contrário, tentando sobreviver. Lembrou-se de um poema de Hilda Hilst, quis ser Túlio para que Hilda o amasse, para que fossem para ele aqueles poemas. Pensou nas confissões de uma viúva moça e nas narrativas Machadianas. Onde estava mesmo? Ah, sim, “Contos Fluminenses”. Que mais? A viúva ali narrada. Sua traição. Lembrou-se de Macabéa morta no asfalto e de Clarice Linspector na contracapa. Precisava ler mais Clarice. Precisava de todas as mulheres: escritoras, poetas, cafetinas, moralistas, todas... Coroou o pensamento com um soneto, quatro, quatro, três... Decassílabo... Um soneto... Abriu os olhos e viu Carolina descansando em seus lábios e chorou.
Ela largou dele no meio da sala, entre as poltronas e o divã, e saiu. Sem maiores diálogos, sem explicação.
Carolina, vinte anos. Carolina depressiva, Carolina das manias, do TOC, da fibromialgia. Carolina amada. Beijada. Curada.
Carolina perdida...

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