quarta-feira, 25 de abril de 2012

A valsa



─ Dona Maria Emilia, posso dar uma palavrinha com a senhora?
─ Claro, Zezé. O que foi?
─ A senhora não põe reparo, mas eu quero minhas conta.
─ Como assim, Zezé? O que foi que houve? Olha, se o problema for o seu salário...
─ Não, o salário não é ruim, não senhora.
─ Já sei! Você quer tirar uns dias de folga para visitar sua família? Pode ir, Zezé. Vá visitar sua parentela.
─ Não quero ver os parente, não. Já morreu quase todo mundo.
─ Ai, Zezé, não faça assim. Você quer que eu te compre uma casinha? Você pode escolher um bairro melhorzinho para morar. O Wilson tem uns apartamentozinhos para investimento. Vou colocar você lá. Você quer?

Quando ficava nervosa, Maria Emilia colocava tudo no diminutivo.

─ Não, senhora. Eu gosto da minha casa. Só quero minhas contas, mesmo.

A patroa sentia o amargo gosto do desespero. Olhava suas unhas tão bem feitas e que logo estariam enroscadas numa cueca, no inevitável esfrega- esfrega para tirar a sujeira. Seus cabelos tão macios, que brevemente estariam amarrados num coque alto e suado, enquanto ela limpava o chão da cozinha.  Maria Emilia tinha o ar dos condenados. 
E o Wilson que só queria bife? Fritar bife, meu Deus. 
Os gêmeos que faziam guerra de macarrão ao final do jantar, Glorinha que apontava todos os lápis em cima da cama. E o Cadu, então? O menino jogava bola e ia atirando as meias encardidas pelos cantos. Lavar aquelas meias era um trabalho tão difícil quanto retirar as tropas do Iraque. Um dia, ela até fez essa comparação, assistindo ao jornal. Disse com despeito: Esse homem está achando difícil tirar um grupo de marmanjo da guerra? Manda ele vir aqui lavar as meias do Cadu, para ver o que é missão impossível. Wilson não respondeu por que já estava dormindo. Os gêmeos, na falta do que dizerem, arrotaram o Hino do flamengo. Era um dom. Arrotar o hino do flamengo inteirinho e olha que eles eram fluminense doentes.


─ Me diga, Zezé? Porque você quer ir embora, minha filha? Eu te fiz alguma coisa? Você está insatisfeita com o quê, pelo amor de Deus?

Maria Emilia já estava quase aos berros. Puxava uns cabelinhos novos nas têmporas.

─ Num guento mais os menino, Dona Maria Emilia. Tomei um abuso das criança. A senhora não leve a mal, mas os bichinho são uns capeta. Outro dia mesmo, os gêmeos mais a menina acenderam um peido de velha no meu quarto enquanto eu dormia. Tomei abuso. A senhora não leve a mal.

Zezé estava com os olhos firmes. Chorosa estava Maria Emilia. Toda dona de casa já passou pelo desespero de ouvir a empregada pedir as contas. O marido pode até ir embora: Olha, benzinho, to fugindo com a dona Euclicia, minha secretária, e não volto mais. A mulher pode até fazer um ar de surpresa, até dizer uns ais e uns porquês, mas desespero mesmo, sentimento de impotência diante do mundo cão é só quando a empregada pede as contas.


À noite, quando o marido chegou, a casa estava com tudo limpo e com um ar de tranqüilidade. Flores novas no vaso, comida pronta na mesa. Toalhas trocadas. Tudo, como sempre, um brinco. Até um pouco mais do que o costume. Foi entrando, viu a mulher com um sorriso de vitória no rosto enquanto retocava o esmalte vermelho na unha.
Passou pelo quarto dos gêmeos, da Glorinha, Cadu, e não viu ninguém

─ Cadê as crianças, Maria Emilia?
─ Estão a caminho de Bento Gonçalves.
─ Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul? Fazendo o que? Quando foram?
─ Mandei passarem uns dias com a Neca.
─ Que Neca?
─ Aquela prima da sua mãe. Uma bem magrinha, asmática. Aquela que fala assobiando.
─ Meu Pai, Maria Emilia. O que foi que aconteceu? Você enlouqueceu? E a escola? A Glorinha está em provas. Que te deu na cabeça? Na casa da Neca, Maria Emília? Tem anos que nem sei da Neca. Não era ela que tomou detergente quando soube que o Dimas era irmão dela? Ela teve caso com o irmão, Maria Emilia! Só explica o porquê de fazer isso com as crianças.
─ A Zezé ameaçou ir embora, Wilson. Disse que não agüenta mais as crianças. Se você quiser trago as crianças, mas a Zezé arruma as coisas dela e vai embora.

Wilson engoliu em seco. Passou o dedo na mesa, enquanto pensava. Nem um pozinho. Nada. Tudo tão limpo, tão brilhante.

─ Quanto tempo elas vão ficar lá?
─ Ainda não combinei com a Neca. Pensei que uns três meses, no máximo quatro. Talvez cinco, se a Neca concordar.
─ É, até que vai ser bom para as crianças. Família é tudo, Maria Emília. Hoje em dia, a juventude não convive mais com a família. Isso sim. Você pensa em tudo, Maria Emilia.

E lá foi Wilson, tomar o banho que Zezé já tinha preparado. Antes de entrar na banheira ainda fez um passinho de dança. Uma valsa. A vida era uma valsa.

Um comentário:

  1. Qdo elas pedem pra dar uma palavrinha,o sangue gela.As secretárias do lar estão em extinção e do jeito que as coisas estão indo ,a ficção se tornará realidade.

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